Do Valor Econômico, 23/04/2012
Por
Bruna Cortez | De São Paulo
Não é de hoje que a música religiosa é um dos segmentos mais
promissores da indústria fonográfica, duramente abalada pela internet e a
pirataria. No Brasil, embora não existam dados oficiais de quanto o
segmento representa da venda total de música, os sinais dessa
importância crescente são claros. Desde 2006, os padres Marcelo Rossi e
Fábio de Mello se revezam no primeiro lugar entre os álbuns mais
vendidos, segundo dados da Associação Brasileira dos Produtores de
Discos (ABPD). E no ano passado, sete dos 20 CDs campeões de vendas eram
de algum artista religioso.
João
Paulo da Silva Bueno, da Livraria Cultura: álbuns religiosos ainda
representam 1% do faturamento com música da rede, mas vendas dobraram em
2011
As grandes gravadoras perceberam a oportunidade há algum tempo,
criando selos próprios ou investindo em artistas do gênero como parte de
seu catálogo principal. Mas faltava um elo na cadeia. Em geral, quem
queria encontrar um CD religioso, principalmente de artistas
evangélicos, tinha de procurar uma loja especializada. Isso está mudando
rapidamente. À semelhança das gravadoras tradicionais, que passaram a
disputar espaço com selos específicos, grandes redes varejistas estão
trazendo para suas prateleiras álbuns do gênero. Nas lojas das redes
Fnac, Saraiva e Livraria Cultura, esses CDs já são tratados como um
segmento comercial estabelecido, como o rap, o hip-hop ou a música
clássica.
"Os álbuns religiosos ainda representam apenas 1% do nosso
faturamento com música, mas as vendas de produtos no segmento dobraram
em 2011", diz João Paulo da Silva Bueno, responsável pelas compras de
CDs da Livraria Cultura. "Não é uma área que a gente possa ignorar."
O cenário é semelhante em outras redes varejistas, nas quais as
vendas do segmento religioso são recentes e modestas, mas apresentam um
ritmo de crescimento galopante.
Um dos motivos por trás desse movimento é a profissionalização do
setor. Durante muito tempo, os álbuns religiosos foram sinônimo de
produções amadoras, bancadas com recursos próprios e feitas em estúdios
de segunda linha. Nos últimos anos, com o interesse crescente do público
- e, em particular, o aumento da população evangélica - os CDs ganharam
qualidade de produção e recursos de marketing. "Não é só o que está
sendo cantado, mas como está sendo cantado", resume Bueno, da Livraria
Cultura.
A profissionalização é tanto resultado da entrada das grandes
gravadoras, quanto do investimento crescente dos selos especializados.
"Se antes os produtos eram vistos como de péssima qualidade, hoje não
deixamos nada a desejar em termos de arranjos, produção e projeto
gráfico", diz Ana Paula Porto, gerente executiva da Graça Music,
gravadora especializada criada em 1999.
A melhoria, reconhecida na indústria fonográfica, lembra um fenômeno
tipicamente americano. Nos Estados Unidos, onde os protestantes
representam 51,3% da população, segundo dados do projeto Pew Forum, foi
criada uma ativa e bem-sucedida indústria de música religiosa. Estrelas
como a cantora pop Whitney Houston e a diva da ópera Jessye Norman
começaram em coros de igreja antes de fazer sucesso em esferas musicais
mais amplas, mas o segmento religioso conta com estrelas próprias e até
um prêmio específico - o Dove - com importância proporcionalmente
semelhante à do Grammy.
O apuro técnico é um dos elementos que ajudam a vender - e bem - a
música religiosa nos EUA. Em 2008, data dos números oficiais mais
recentes, os americanos compraram mais de 56 milhões de álbuns
religiosos, com um aumento de 38% em relação ao ano anterior, segundo
dados da Gospel Music Association.
No Brasil, a entrada das gravadoras tradicionais, a partir de 2007,
deu um empurrão adicional aos negócios ao proporcionar às lojas uma
familiaridade com o segmento que não existia anteriormente. "O fato de
já trabalharmos com as grandes gravadoras facilitou a compra [de álbuns
religiosos] pela Fnac", diz Juliana Bego, gerente comercial de produtos
editoriais da rede varejista.
Conhecer bem o interlocutor pode parecer um detalhe, mas é
fundamental no caso da música religiosa. Existem no Brasil mais de 120
selos especializados, segundo dados da organização do Salão
Internacional Gospel. Muitas dessas gravadoras têm tamanho reduzido e
são ligadas a igrejas evangélicas, com menor apelo para o grande varejo.
O trabalho para os lojistas é selecionar as gravadoras com maior
potencial de vendas.
As redes varejistas ouvidas pelo Valor informaram
estar negociando com os selos religiosos, diretamente ou por meio de
distribuidores. Isso está permitindo que nomes de sucesso no universo
religioso ganhem espaço nas gôndolas, mesmo que ainda não sejam tão
conhecidos do grande público. A lista inclui artistas como Aline Barros,
Ana Paula Valadão, Diante do Trono, Cassiane e Regis Danese. "Não
deixamos de trazer [um álbum] porque não sabemos quem é o artista", diz
Bueno, da Livraria Cultura.
Para as lojas, a oferta crescente de música religiosa não significa
que um novo tipo de público passou a percorrer suas estantes. Essa é
outra constatação importante. As livrarias perceberam que uma parte dos
consumidores que compra regularmente livros e álbuns religiosos é a
mesma que adquire artigos comuns, ou seculares. A diferença é que se
antes eles tinham de vasculhar lojas diferentes, hoje encontram tudo -
ou, pelo menos, um número maior de artigos - no mesmo lugar.
Crescimento de evangélicos influencia fenômeno
Embora não seja um fenômeno exclusivamente evangélico, o sucesso da
música religiosa no Brasil tem muito a ver com o crescimento recente de
dois grupos de matiz evangélica: os pentecostais e neopentecostais.
Foram essas denominações que puxaram o crescimento da população
evangélica, que aumentou de 9% para 15,4% da população total entre 1991 e
2000, segundo dados do Censo 2000, do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE). No período, a participação dos pentecostais -
igrejas como Assembleia de Deus e Congregação Cristã do Brasil, fundadas
no início do século passado - subiu de 5,6% para 10,6%.
O crescimento superou com folga o dos evangélicos de missão -
seguidores de igrejas protestantes com raízes europeias, como
anglicanas, luteranas e presbiterianas -, que cresceram de 3% para 4% no
período. Não há dados específicos sobre o número de neopentecostais,
como os fiéis de igrejas como Renascer e Universal do Reino de Deus, que
foram criadas nos anos 70, mas permanecem incluídas no grupo dos
pentecostais para efeito do censo.
A principal diferença entre os evangélicos de missão e os
pentecostais e neopentecostais é o tipo de mensagem oferecida aos fiéis,
diz Antônio Flávio de Oliveira Pierucci, professor de sociologia da
religião da Universidade de São Paulo (USP). "[Nessas igrejas] fala-se
em prosperidade e melhoria de vida agora e não em outro mundo [após a
morte], como acontece nas igrejas mais tradicionais", diz o acadêmico.
Os dados relativos à religião do Censo 2010 ainda não foram
divulgados, mas outras fontes indicam, em períodos mais recentes, um
aumento ainda maior que o da década anterior. De acordo com o instituto
de pesquisa Datafolha, os evangélicos já representavam 25% dos
brasileiros em outubro de 2010.
Frente ao crescimento expressivo, há quem diga que os evangélicos
podem somar até 50% da população em 2020. Para o especialista da USP, a
previsão é pouco factível. O crescimento tem sido puxado pelas duas
primeiras gerações de pentecostais e neopentecostais, afirma Pierucci, e
vai perder ímpeto com o passar do tempo. "Nas igrejas mais
tradicionais, já se observa um fenômeno parecido com o que atingiu o
catolicismo", diz o especialista.
Outro fenômeno que começa a ocorrer no Brasil é o surgimento do
"evangélico genérico". O termo é usado para caracterizar alguém que é
evangélico, mas não se prende a uma denominação específica, seja ela de
missão, pentecostal ou neopentecostal. "É um evangélico praticante, mas
não muito", diz Pierucci.
Segmento ganha exposição com grandes gravadoras
De São Paulo
Marcelo Soares, diretor-geral da Som Livre: "Esse é o topo do iceberg de um movimento que passou anos se solidificando"
Visibilidade é um dos componentes centrais da roda-viva que
alimenta a indústria fonográfica. Vender disco - seja um CD ou um
arquivo de áudio via internet - depende, em grande medida, da exposição
do artista a seu público potencial. E quanto mais álbuns vendidos, maior
a capacidade da gravadora de fazer publicidade.
No caso da música religiosa, o interesse das grandes gravadoras foi
fundamental para divulgar a um público mais amplo nomes só conhecidos de
um círculo restrito de consumidores, dizem os varejistas. "A força de
uma grande gravadora faz um trabalho de mídia que ajuda a vender esse
tipo de produto", afirma Juliana Bego, gerente comercial de produtos
editoriais da Fnac.
Para as gravadoras, o trabalho de marketing exigido pelo mercado
religioso também é facilitado por uma característica específica desse
segmento, principalmente no caso dos artistas evangélicos. O ponto é
que, embora existam igrejas evangélicas muito diferentes entre si - dos
protestantes históricos aos pentecostais e neopentecostais -, trata-se
de um público com hábitos mais homogêneos no que se refere ao consumo de
artigos religiosos. Os selos fonográficos sabem melhor com que público
estão falando, o que torna mais eficiente a mensagem publicitária.
As estratégias variam de gravadora para gravadora. A Sony decidiu
criar uma divisão específica. "Se tratássemos [o segmento] de maneira
comum, não conseguiríamos ter acesso a esse público", afirma Mauricio
Soares, diretor do departamento gospel da Sony. Soares já havia
trabalhado em gravadoras especializadas e foi contratado pela Sony em
2010 para criar a unidade.
Um dos principais desafios, diz o diretor, foi estabelecer o
relacionamento com os pontos de venda especializados, que continuam
fundamentais nesse mercado. Agora, dois anos depois de iniciar suas
atividades, a divisão gospel da Sony tem contato com cerca de 200 desses
pontos. O diretor não divulga os resultados financeiros da unidade, mas
afirma que o retorno veio "muito rápido".
Atrair artistas é outro desafio para as grandes gravadoras. As
sondagens - a despeito da possibilidade de maior exposição - nem sempre
são recebidas de braços abertos. "[Muitos cantores evangélicos] são
pessoas que começam a fazer música não necessariamente para ter uma
carreira", afirma Marcelo Soares, diretor-geral da Som Livre. "No
momento em que o caminho [religioso] cruza com o secular, acontece uma
desconfiança".
A Som Livre não divulga números específicos do segmento religioso. As
vendas de CDs e DVDs nesse segmento, incluindo os de artistas
católicos, representaram 25% do total vendido em 2011, em número de
unidades, ante 20% em 2010. Na gravadora, o sentimento é de que a curva
vai se acentuar ainda mais nos próximos anos. "O que vemos hoje é o
'topo do iceberg' de um movimento que passou anos se solidificando",
afirma o diretor-geral da Som Livre.
Somadas, a Sony e a Sony Livre lançaram 23 produtos de artistas
brasileiros do segmento religioso em 2011, entre CDs e DVDs. De forma
mais tímida, a Universal Music também entrou nesse mercado no ano
passado, com o lançamento do CD e do DVD da cantora Carol Celico, esposa
do jogador de futebol Kaká.
Para quem já estava nesse mercado, como as gravadoras especializadas
MK Music e Graça Music, a chegada dos grandes selos não é vista de
maneira negativa. "A disputa é boa porque nos faz querer melhorar",
afirma Marina Oliveira, sócia e diretora artística da MK. A gravadora
foi criada há 26 anos e tem um faturamento médio de R$ 30 milhões por
ano. De acordo com a executiva, vários de seus contratados têm sido
procurados por grandes gravadoras, mas muitos deles preferem não deixar a
empresa.
Site leva clipes para a internet
Por De São Paulo
No universo da
internet, começam a surgir empresas brasileiras que estão de olho no
segmento religioso. A LouveTV, rede social e canal de transmissões
on-line de clipes musicais evangélicos, é uma dessas companhias.
"É um mercado em ascensão, no qual temos um número cada vez maior de
artistas", afirma David Almiron, sócio-fundador da LouveTV. O site,
lançado no fim do ano passado, exibe clipes de cantores evangélicos e
permite adicionar amigos, enviar mensagens e compartilhar fotografias -
recursos tradicionais de redes sociais.
O projeto teve um investimento inicial de R$ 1 milhão e foi
financiado por Almiron e pelos sócios Alberto Vilar, Lêka Coutinho,
Eduardo Rodrigues e Evandro Paiva. Todos já tinham experiência no
mercado fonográfico tradicional. Os planos da LouveTV incluem um aporte
de mais R$ 2 milhões até 2013.
De acordo com Almiron, a descoberta do potencial do mercado de música
religiosa ocorreu em 2005, quando ele produziu o clipe de um artista do
gênero pela primeira vez. Inicialmente, a ideia do executivo era um
canal de música gospel na TV. As dificuldades e os custos relacionados à
concessão de licenças, porém, afastaram essa possibilidade e o projeto
foi adaptado para a web.
O site levou cerca de oito meses para ser desenvolvido e a principal
fonte de receita é a venda de espaço publicitário. "Vamos entrar em
contato com anunciantes e patrocinadores compatíveis com o público do
site", diz. Para exibir os clipes de artistas religiosos, a LouveTV
firmou acordos com selos especializados e grandes gravadoras, como a
Sony Music.